Portugal publica decreto que altera a organização e o funcionamento do Sistema Elétrico Nacional

A descarbonização da economia e a modernização do setor de energia têm sido tema conjunto de grande preocupação em Portugal, refletido no próprio ordenamento normativo do país, a exemplo do Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (PNEC 2030), principal instrumento de política energética e climática nacional, e o Pacto Ecológico Europeu, que estabeleceu o roteiro para a redução de emissões em, pelo menos, 55% até 2030. Não obstante, ainda havia questões determinadas pela União Europeia sobre o tema pendentes de internalização por Portugal, nomeadamente as compreendidas pelas Diretivas da União Europeia  nº 2019/944 e nº 2018/2001.

Dessa forma, Portugal publicou, em 14 de janeiro, o Decreto-Lei nº 15/202, em cumprimento ao que exigem essas Diretivas da UE. A nova norma pretende, assim, concentrar as matérias estruturais da organização e funcionamento do setor de energia português, que até agora se encontravam dispersas em vários diplomas legais, além de introduzir mudanças para viabilizar a melhor articulação dos regimes jurídicos e a apreensão dos mesmos pelos respetivos destinatários e aplicadores.

Este diploma visa assim transpor estas diretivas da UE, aproveitando o ensejo para firmar legislativamente a mudança de paradigma do Sistema Elétrico Nacional (SEN) para um modelo descentralizado de produção de eletricidade, soluções de autoconsumo, gestão ativa de redes inteligentes e que assegure a participação ativa dos consumidores nos mercados.

Neste prisma de mudança, as alterações estruturam-se em 5 eixos fundamentais: (i) organização da atividade administrativa por trás do SEN e de atuação prévia às atividades principais do setor; (ii) otimização do planejamento das redes; (iii) ajustes para assegurar a concorrência salutar no SEN; (iv) consagração do novo papel dos consumidores; e (v) criação do enquadramento jurídico de realidades inovadoras como o reequipamento, os híbridos ou a hibridização e o armazenamento.

Quanto ao ponto (i), as principais novidades da norma consistiram em: a) concentrar as matérias centrais da organização e funcionamento do SEN em um único normativo, b) simplificar o funcionamento do SEN com a eliminação de dois procedimentos distintos de licenciamento da atividade de produção de eletricidade, c) estabelecimento dos mecanismos de comunicação prévia, o registro e a licença para abranger a totalidade das atividades de produção, autoconsumo e armazenamento, o que permite uma melhor articulação destes procedimentos, assegurando a redução dos custos administrativos para os interessados e para as entidades públicas competentes; e d) estabelecimento de mecanismo não discriminatório de cedências pelos produtores para a satisfação das necessidades energéticas das autarquias e populações locais.

Em termos de planejamento das redes (ii), consta na nova norma a orientação de maximização do potencial de capacidade de recepção da rede elétrica de serviço público (RESP), em linha com o interesse público da proteção dos consumidores que suportam os seus custos e com a obrigação de preservar o território com a construção das linhas estritamente necessárias ao funcionamento do SEN, incluindo possibilidade de atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP com restrições. Nesse contexto, planos de desenvolvimento e investimento das redes de transmissão e distribuição passam a ter de justificar, mediante uma análise de custo e benefício, a necessidade de construção de novas infraestruturas face a outras alternativas viáveis, designadamente o recurso à contratação, em mercado, de flexibilidade de recursos distribuídos, como o armazenamento, resposta da procura e da produção de eletricidade.

Quanto ao eixo (iii), dos aspectos concorrenciais, o Decreto-Lei publicado introduz importantes mudanças, em especial: a) procedimentos concorrenciais para atribuição de títulos de reserva de capacidade de injeção na RESP; b) criação de um gestor integrado das redes de distribuição em alta tensão, média tensão e baixa tensão (BT), que exercerá a atividade em regime de concessão atribuída mediante prévio procedimento concorrencial, cuja intenção é garantir uma gestão técnica de todas as concessões das redes de distribuição, assegurando a eficácia e coerência de atuação, numa única entidade, assim se salvaguardando o abastecimento; c) eliminação dos regimes de remuneração garantida e adoção do regime de remuneração geral, assente no preço livremente determinado em mercado, mantida a possibilidade, ao abrigo do disposto nas diretivas da União Europeia, de atribuir regimes de apoio à produção a partir de fontes de energia renováveis que permitam a recuperação do custo de oportunidade do investimento, mas sempre condicionados à realização de procedimentos concorrenciais.

O aspecto (iv) reúne dispositivos que confirmam a participação ativa dos consumidores, que passam a desempenhar papel relevante no setor, seja de forma individual, coletiva ou através das chamadas comunidades de energia. Para implementar este aspecto, a nova norma a) impõe a instalação de contadores e redes inteligentes, b) cria a figura do “agregador” para eliminação das barreiras à participação nos mercados de eletricidade, c) dispensa a intervenção do operador da RESP no caso de autoconsumo, c) reforça a partilha dinâmica que permite, com eficiência, otimizar os fluxos de eletricidades entre os auto consumidores que atuam coletivamente, d) reforça os direitos de informação dos consumidores, designadamente através da concentração da informação essencial, e) obriga a disponibilização de contratos de fornecimento a preços dinâmicos, permitindo ajustar o perfil do consumo ao preço diferenciado entre períodos horários, promovendo o fornecimento de serviços de flexibilidade; e f) cria um novo regime para a apropriação ilícita de energia.

Por fim, para acomodação de assuntos mais recentes e disruptivos, o último grande contributo da norma foi a criação de três zonas livres tecnológicas (ZLT), destinadas a projetos-piloto de investigação e desenvolvimento para: a) desenvolvimento de clusters de inovação que contribuam para o pretendido objetivo de desenvolvimento das atividades de produção de eletricidade offshore, b) a área da central termoelétrica do Pego e c) investigação e desenvolvimento de tecnologias visando a dupla ocupação do solo, designadamente através da utilização dos painéis solares como um instrumento de proteção contra as alterações climáticas.