Por unanimidade, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a legitimidade da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) para impor sanções aos seus associados e promover a cobrança judicial das multas e encargos associativos. Para o Tribunal, tal possibilidade não é justificada pelo poder de polícia, mas decorre dos instrumentos de autorregulação interna do setor elétrico.
O caso, versado no Recurso Especial 1.950.332/RJ, cuida de uma ação de cobrança ajuizada pela CCEE contra um de seus associados – uma geradora de energia elétrica – que tem como objeto multas aplicadas no contexto da comercialização de energia e contribuições associativas.
O processo foi julgado procedente em 1ª instância, tendo a conclusão sido ratificada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). Contudo, inicialmente, o Recurso Especial da associada foi provido para julgar improcedente a ação de cobrança, sob a justificativa de não ser possível delegar à CCEE, uma entidade associativa de natureza privada, a atividade sancionadora decorrente do poder de polícia que detém o Estado.
Em seu voto, o ministro Gurgel de Faria entendeu que a associação exercia o poder de polícia de modo irregular: “diante da gravidade ínsita ao poder de limitar direitos particulares impondo sanções administrativos, entendo que a regra é pela indelegabilidade dessa atribuição do poder de polícia às pessoas jurídicas de direito privado que não integram a Administração Pública.”, tal qual a CCEE.
Em face dessa decisão, a Câmara opôs Embargos Declaratórios suscitando omissão em relação ao argumento da autorregulação interna setorial de que dispõe. A omissão foi reconhecida, tendo sido atribuídos efeitos infringentes aos Aclaratórios para reverter o julgamento e negar provimento ao Recurso Especial interposto pela associada.
Ao julgar o recurso integrativo, o ministro relator não alterou sua visão quanto à impossibilidade de a CCEE se valer do poder de polícia decorrente do poderreservado exclusivamente ao Estado brasileiro: “O exercício do poder de polícia é, portanto, uma prerrogativa do Estado, delegável apenas em casos restritos e nas condições acima citadas.”
Entretanto, reconheceu que a CCEE se vale, de modo legítimo, dos instrumentos derivados do papel que desempenha na autorregulação interna do setor elétrico, principalmente na possibilidade de regular, fiscalizar e punir os associados com respaldo na legislação setorial e nos procedimentos aprovados no âmbito interno da Câmara. Segundo o ministro, “reexaminando o caso à luz da autorregulação, verifica-se que, diferentemente de uma autoridade pública no exercício do poder de polícia, a CCEE, constituída como associação privada, agiu, na espécie, em regime de autorregulação em relação ao agente econômico a ela vinculado/associado, para promover a organização e o funcionamento do mercado de energia elétrica.”
O ministro relator destacou que, quando da adesão à CCEE, o associado atuante no setor adere também ao processo de elaboração das normativas internas da entidade, inclusive naquilo que diz respeito às sanções – pecuniárias ou não. Nesse sentido, não se está diante de penalidades aplicadas pela autoridade do Estado, mas sim de “sanções que muito mais se aproximam ao caráter privado, relativas ao cumprimento de obrigações entre os associados”.
Finalmente, pontuou que mesmo ausente legislação expressa para a associação aplicar multas aos seus associados, não há de se falar em ilegalidade já que a autorregulação prescinde dessa previsão. No caso em apreço, a atribuição de aplicar as sanções e perseguir seu cumprimento deriva de “normas secundárias (do Decreto n. 5.177/2004 c/c Resolução Normativa ANEEL n. 109/2004[1]), já que autorizados pela Lei n. 10.848/2004. Estas normativas lhe conferem poderes para aplicar sanções administrativas internas, mantendo o controle e a disciplina entre os agentes associados, garantindo, assim, o equilíbrio no mercado de energia elétrica.”
Portanto, tendo em vista que a CCEE é uma entidade privada autorizada por lei e que seu papel na autorregulação interna do setor elétrico é supervisionado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), não restam dúvidas quanto à sua possibilidade de regular condutas e perseguir o cumprimento das penalidades perante seus associados.
Em conclusão, não há dúvidas que o posicionamento do STJ atua em favor da segurança jurídica e da confiança no arcabouço da governança do setor elétrico, vigente desde a reformulação na década de 90, assim como para outros setores regulados com atuação de entidades com poderes de autorregulação.
A decisão pode ser encontrada aqui.
As equipes de Energia e Contencioso Empresarial do Rolim Goulart Cardoso estão à disposição para esclarecer dúvidas ou atender demandas relacionadas ao tema, além de acompanhar os desdobramentos do caso.