Elise Calixto Hale Crystal[1]
Alice de Siqueira Khouri[2]
Bernardo G. Ferreira da Silva[3]
INTRODUÇÃO
O mercado de energia, mundialmente, é um ambiente de constante mudança. Devido às inerentes influências econômicas, geopolíticas, sociais e de ordem legal, estes mercados formados pela cadeia produtiva de energia exigem um constante aprimoramento e uma estratégia com visão multidisciplinar dos profissionais que atuam nesse setor.
Com o Brasil não é diferente. Interessante notar que o desenvolvimento da área de Energia do escritório Rolim, Goulart e Cardoso Advogados, que este ano completa 30 anos, coincide com um período marcado por profunda transformação no Setor Elétrico Brasileiro (SEB). Como equipe dedicada ao tema, crescemos ao redor de um setor efetivamente dinâmico: antes marcado pela centralização e pela forte participação do Estado, hoje com um cenário de crescente descentralização e diversidade de agentes econômicos.
Além da constante atualização, as reformais institucionais e regulatórias que o setor atravessou nas últimas três décadas permitiram que o escritório atuasse ativamente neste processo transformativo do Setor Elétrico, apoiando na concepção das propostas em fóruns de discussão e processos de participação pública promovidos pelas instituições do setor, bem como na análise dos efeitos das medidas implementadas para os nossos clientes.
A partir dessa perspectiva de reconhecimento de um setor em constante transformação e multidisciplinar, com desafios crescentes sobretudo nas últimas três décadas, este artigo busca analisar de forma crítica os processos que culminaram nas grandes reformas do Setor Elétrico e que trouxeram o mercado de energia até o cenário atual, onde a sustentabilidade e as urgências climáticas marcam o desafio, mas também as oportunidades, do desenvolvimento.
1. A EVOLUÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E ECONOMIA: UM RETRATO DA INTERFERÊNCIA ESTATAL NO MERCADO DE ENERGIA ELÉTRICA
Entre a década de 1930 até o fim dos anos 1980, grande parte das atividades econômicas eram marcadas pela intervenção direta do Estado, o que se refletia também na prestação dos serviços públicos e marcava um Setor Elétrico essencialmente de caráter público. Com efeito, o setor possuía um modelo centralizado no regulador e com forte participação estatal, especialmente do Governo Federal, que atuava tanto por meio da participação em empresas nos diferentes segmentos do mercado (geração, transmissão e distribuição), como também pela participação de investimentos e financiamentos para construção dos grandes ativos, tais como as usinas e as linhas de transmissão.
Contudo, a estatização excessiva conduziu a um cenário de crise financeira e fez com que fosse necessário encontrar alternativas ao modelo de intervenção direta na economia e na prestação de serviços públicos pelo próprio Estado, perdendo espaço o Estado prestador, produtor e protecionista, que seria substituído pelo foco na regulação, por meio do planejamento e coordenação institucional das atividades econômicas.
O advento da Constituição de 1988 já sinalizava uma reformulação no papel do Estado na economia, ao estabelecer que a ordem econômica tem por base a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano, cabendo ao Estado as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. O Estado deixava, assim, de ser o principal propulsor da atividade econômica – função essa agora capitaneada pela iniciativa privada – cabendo-lhe reprimir abusos e assegurar o bem-estar da coletividade e o desenvolvimento do país.[4]
Barroso[5] caracteriza a década que sucedeu a promulgação da Constituição como de consolidação de grandes transformações na ordem econômica do país, que não necessariamente se deram a partir de alterações no plano constitucional. É o caso, por exemplo, do Programa Nacional de Privatizações, implementado a partir da Lei nº 8.031/1990, posteriormente substituída pela Lei nº 9.491/1997, e que adotou mecanismos como a alienação do controle de empresas estatais, tanto as que exploram atividades econômicas como as que prestam serviços públicos, e da concessão de serviços públicos a empresas privadas, para atendimento das suas finalidades.
Na concepção de Estado que emerge dessa conjuntura, não se espera mais dele a execução direta dos serviços públicos, mas a sua atuação de modo a assegurar a prestação satisfatória e acessível a todos, concentrando-se no planejamento e no controle da atividade, delegando a particulares, por meio de concessões e permissões previamente licitadas, a execução do serviço e garantia da remuneração por meio de tarifas módicas.[6]
Especificamente no Setor Elétrico, compreendeu-se diante das restrições fiscais que a manutenção da utilização de políticas tarifárias como forma de contenção do processo inflacionários se mostrava inviável, bem como que a expansão da infraestrutura do setor não poderia permanecer dependente de operações de financiamento por meio dessas empresas públicas e das sociedades de economia mista, pois a capacidade de endividamento da própria União já estava esgotada.[7]
Nesse contexto, um dos principais marcos da reformulação do papel do estatal no Setor Elétrico se dá com a criação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), por meio da Lei nº 9.427/1996. Substituindo o antigo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), criado em 1934, durante o governo de Getúlio Vargas, em um contexto de centralização e nacionalização dos serviços de energia elétrica, a Agência, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, foi criada com a finalidade de regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal. Interessante notar que nessa época a predominância da fonte hídrica para geração de energia era ainda mais acentuada do que nos dias atuais, e que a matriz elétrica brasileira estava assente em um racional voltado para a exploração dos recursos hídricos.
Em seguida, a legislação federal deu continuidade às transformações político-econômicas e foram editadas as Leis nº 8.987 (Lei Geral de Concessões) e nº 9.074, de 1995. A primeira definiu regras gerais para prestação de serviços públicos, tais como os direitos e obrigações dos concessionários e usuários, a instituição do serviço pelo preço (em substituição ao serviço pelo custo), com reajustes e revisões tarifárias, de modo a garantir o equilíbrio econômico-financeiro das concessões. A segunda, estabeleceu mudanças especificas no Setor Elétrico, com a criação de agentes que ainda não existiam: a figura do Produtor Independente de Energia (PIE), do Consumidor Livre e a definição das condições e critérios aplicáveis à outorga para autoprodução de energia elétrica (APE).
Em seguida, outras medidas foram propostas e implementadas, destacando-se a influência dos estudos do Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro (RE-SEB). O relatório final do projeto, apresentado em 1997, consolidou recomendações como a (i) livre comercialização de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional; (ii) criação de Mercado Atacadista de Energia (MAE), para operacionalizar a compra e venda de energia livremente negociada; (iii) criação de um Operador Independente do Sistema (OIS); e (iv) desverticalização do setor, com desmembramento dos ativos de geração e transmissão, desvinculando a contratação da transmissão da compra e venda de energia.[8]
Outra relevante movimentação legislativa foi a edição da Lei nº 9.648/1998, responsável por estabelecer o regime de livre negociação na compra e venda de energia entre concessionários, permissionários e autorizadas, e pela criação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), destinado a executar as atividades de coordenação e controle da operação da geração e da transmissão de energia no âmbito do SIN, bem como pelo planejamento, programação da operação do sistema e do despacho centralizado, visando otimizar o uso dos recursos hídricos.
As transformações narradas materializaram no Setor Elétrico a mudança de um Estado Intervencionista para um Estado Regulador, modelo em que técnica e a especialização assumem um papel central, desdobrando-se na adoção de um arranjo institucional de uma Administração Pública pluricêntrica, em que, no plano ideal, se destacam entidades reguladoras dotadas de “autonomia reforçada”.[9]
As alterações de perspectivas da atuação do Estado nos setores regulados, conjugadas aos diagnósticos realizados a partir da crise do racionamento de 2001 e com a diversificação da matriz do setor e dos players que nele atuam, culminaram em uma reformulação do modelo institucional e da própria governança do Setor Elétrico, que passamos a analisar no tópico adiante.
2. ESTRUTURA ATUAL DO MODELO INSTITUCIONAL E DE GOVERNANÇA DO SETOR ELÉTRICO
O modelo institucional adotado no Setor Elétrico representa o sistema de organização interna e compartilhamento de competências entre as diversas entidades e agentes setoriais. O exercício da autoridade política, econômica e administrativa para a gestão de assuntos públicos por essas instituições, em um contexto de tomada de decisões que envolvem interesses e recursos públicos, é entendido, lato sensu, como Governança, segundo definição dada Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)[10].
O atual arranjo de governança do Setor Elétrico foi diretamente influenciado pela crise de racionamento de energia de 2001. Isto porque, apesar de já estarem constituídas instituições como ANEEL, ONS e MAE, o formato não se mostrou capaz de impedir que os cenários críticos de um apagão e os sérios impactos econômicos se materializassem.
Um dos fatores apontados como determinante para a crise teria sido a falta de um planejamento efetivo e do monitoramento da estrutura como um todo, bem como a demora no início do funcionamento do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE)[11] e do Comitê Coordenador de Planejamento da Expansão do Sistema Elétrico (CCPE)[12].
Nesse cenário, Kelman, por sua vez, pontuou no “Relatório da Comissão de Análise do Sistema Hidrotérmico de Energia Elétrica”[13] a inexistência de leis destinadas a estabelecer a responsabilidade pelo planejamento da expansão do Setor Elétrico, destacando que a regulação não se mostrava capaz de criar um ambiente de credibilidade que propiciasse o investimento e o interesse do consumidor.
Havia, portanto, incerteza quanto à estabilidade das regras vigentes, bem como sobre o ambiente regulatório que, como um todo, ainda não definia com clareza as atribuições e as responsabilidades específicas de cada agente, o que afetava a segurança jurídica para os investimentos tão importantes para permitir a expansão da oferta de energia.
Diante do diagnóstico da necessidade mudanças para evitar que a crise se repetisse, o Governo Federal criou um Grupo de Trabalho, que resultou na “Proposta de Modelo Institucional do Setor Elétrico”[14], cujas recomendações passaram por aspectos institucionais, contratuais, de planejamento e de financiamento.
A partir desses estudos foram editadas a Medida Provisória (MP) n. 144/2003, convertida na Lei nº 10.848/2004, que estabeleceu o novo modelo de comercialização de energia elétrica e que autorizou a criação da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), e a MP nº 145/2003, convertida na Lei nº 10.847/2004, que autorizou a criação da Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE).
Em seguida, foi publicada uma série de Decretos, alguns diretamente relacionados à definição do modelo institucional do Setor elétrico: a) Decreto nº 5.081/2004, que regulamentou a atuação do ONS; b) Decreto nº 5.177/2004, dispondo sobre atribuições, organização e funcionamento da CCEE[15]; c) Decreto nº 5.184/2004, que criou a EPE, com o objetivo de prestar serviços nas áreas de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento do setor energético, e aprovou o seu Estatuto Social; e, d) Decreto nº 5.195/2004, que constituiu o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), com a função precípua de acompanhar e avaliar permanentemente a continuidade e a segurança do suprimento eletroenergético em todo o território nacional.
Consolidou-se, assim, o atual desenho dos órgãos responsáveis por garantir o funcionamento do setor.
Tolmasquim, que participou ativamente da reforma setorial de 2004, estabelece uma classificação para as instituições setoriais, separando-as entre aquelas que desempenham atividades de governo (CNPE, MME, EPE e CMSE), as que executam atividades regulatórias (ANEEL), e as entidades de direito privado que executam atividades especiais (ONS e CCEE).
Pela figura abaixo, é possível observar a atual distribuição das instituições responsáveis pela Governança do Setor Elétrico:
Fonte: Site Abradee
Apesar de muitas vezes não serem considerados como atores da governança setorial, convém ressaltar o papel do Congresso Nacional e da própria Presidência da República como instituições com influência direta na Governança, diante da capacidade de edição de leis, Medidas Provisórias e Decretos com grande potencial de impacto nos rumos do setor, não obstante a regulação exercida pela ANEEL seja – e deva ser – tecnicamente independente.
Destaque-se, nesse ponto, a importância de que certos princípios sejam observados para o desempenho adequado da governança setorial que se consolida com a relação entre as entidades ilustradas acima, especialmente diante dos desafios que emergem do surgimento de novas tecnologias e de um mercado de energia cada vez mais complexo e plural em termos de agentes e interesses econômicos.
Nesse sentido, cada vez mais se firma como essencial que a estrutura de governança setorial envolva cooperação e coordenação entre as instituições com um equilíbrio de esforços para (i) manter a segurança jurídica e previsibilidade que confere a confiança no regulador, mantendo a atratividade do setor ao investimento e aos agentes, o que se dá, por exemplo, por meio de regras claras e estáveis, e (ii) garantir a flexibilidade e responsividade necessária para endereçar os desafios atuais e, com inovação, permitir o crescimento do setor de forma múltipla, diversificada em termos de interesses e projetos em uma era marcada pela urgência climática e o desafio constante de um trilema: preço, segurança energética e sustentabilidade ambiental.
De forma mais prática, para o equilíbrio retromencionado é importante avançarmos em definições mais claras das responsabilidades e tipos de providências que incumbem a cada instituição em determinadas situações, de forma a evitar conflitos e redundâncias que, por vezes, implicam em sinalizações inadequadas e posicionamentos sobrepostos, resultando em insegurança jurídica, litigância e ineficiência.
Como exemplo desse necessário aprimoramento, podemos citar o caso do crescimento exponencial da geração de energia a partir da fonte solar e de forma distribuída, ou seja, descentralizada. Não obstante o êxito em fomentar o mercado de geração distribuída no país com o modelo de Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE), a política adotada pela ANEEL, com a edição da Resolução Normativa nº 482/2012 que, em tese, continha diretrizes que competiria ao Poder Concedente, repercutiu em custos distorcidos aos demais agentes e causou insegurança em primeiro momento. Com o desenvolvimento e organização do mercado, a Agência não teve êxito (ou legitimidade) quanto à revisão dos benefícios tarifários no prazo inicialmente previsto na norma, abrindo espaço para a atuação do Poder Legislativo por meio da publicação da Lei nº 14.300/2022 (Marco Legal da Geração Distribuída), com cerca de três anos de atraso em relação à data de 31 dezembro de 2019[16]. A regulação e o Direito, como é natural, estarão sempre atrasados com relação à realidade econômica, mas é importante que estes sejam instrumentos de viabilização das necessidades emergentes do mercado e que reflitam as mudanças vividas de forma eficiente.
Outro caso em que ficou exposta a sobreposição de responsabilidades, que ressalta a necessária cooperação e coordenação, foi o recente apagão ocorrido em 15 de agosto de 2023. Ao longo do dia, instituições diferentes apresentaram causas distintas e divergentes sobre o que teria acarretado o apagão, sem que possuíssem, contudo, os dados técnicos e operacionais necessários coordenados para endereçar os esclarecimentos necessários à complexidade do evento.[17] Momentos de instabilidade como estes refletem, ainda mais, a necessidade de coordenação institucional, transparência e responsividade na condução de um setor elétrico que é cada vez mais complexo, plural e com desafios urgentes.
Como vimos, os últimos anos não foram monótonos no setor de energia brasileiro. Por certo, os próximos anos também reservam desafios que exigirão constante aprimoramento, e também flexibilidade para que as instituições e o arcabouço normativo sejam capazes de acompanhar as inovações do mercado e fomentar o investimento para que, cada vez mais, tenhamos segurança jurídica, a um preço equilibrado, e em processos condizentes com a urgência climática. Tratando-se de um setor diretamente ligado ao desenvolvimento econômico do país, o contexto econômico e regulatório desafiante vivenciado certamente exigirá mais da atuação da advocacia especializada, que além das mudanças específicas do setor, também deve estar atenta e a atualizada às novas tendências jurídicas para oferecer soluções com visão multidisciplinar.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS: ABORDAGENS REGULATÓRIAS PARA O FUTURO DE UM SETOR ELÉTRICO EM CONSTANTE TRANSFORMAÇÃO
As inovações e o desenvolvimento tecnológico implicam mudanças profundas na dinâmica do setor elétrico. Se antes o consumidor era visto como uma figura passiva ou de pouca interferência na cadeia produtiva, atuando como destinatário de um serviço pronto ao final da cadeia da indústria, hoje o cenário é bastante diferente. As novas tecnologias – estimuladas sobretudo, neste ponto, pelo desafio ambiental e econômico – permitem que o consumidor assuma novas funções, podendo atuar na figura de gerador por meio da geração distribuída, modular seu perfil de consumo para se beneficiar de programas de resposta da demanda e de tarifas horárias, adotar recursos de armazenamento, dentre outras inovações que surgem constantemente.[18]
Para se adaptar a esse novo cenário, contudo, diversas adequações serão necessárias, tanto no arcabouço normativo, quanto na forma de atuação das instituições setoriais e, especialmente, do regulador.
Novos marcos legais precisão ser editados para dar encaminhamento a questões fundamentais, como os custos decorrentes da migração de consumidores para o mercado livre, a política de subsídios, o prosseguimento da desverticalização nas concessões de distribuição de energia elétrica com a separação das atividades de comercialização e distribuição, para que as distribuidoras se concentrem no seu core business (a chamada atividade de fio) [19], dentre outras medidas necessárias à adequação do setor aos novos tempos.
As instituições, assim, terão que desenvolver novas abordagens, que garantam uma atuação regulatória de excelência, capaz de atender às expectativas do mercado e da sociedade com responsividade eficiente, mas sem pecar em segurança jurídica. Nesse contexto, valiosas as lições do Professor Robert Baldwin, da London School of Economics and Political Science, em seu paper Regulatory Excellence and Lucidity[20], ao abordar as características da atuação regulatória de excelência:
There is a difference of kind between the satisfactory and the excellent regulator and this distinction turns on the lucidity with which the latter regulator will discharge the array of tasks that it is charged to perform. The excellent regulator, on such a view, is marked out by a level of conscious clarity that is systemic and sustained. (…)The excellent regulator, moreover, will not only perform well currently but will offer assurance to regulatory stakeholders that such a level of performance is likely to continue into the future. It will do so by being able to show that it has developed high levels of institutional competence across all aspects of its work activities. (…)
Em sentido complementar à perspectiva de Baldwin, o Professor Cary Coglianese, da University of Pennsylvania, destaca o conjunto de quatro itens essenciais na excelência regulatória: “The keys to regulatory excellence include internal management, priority-setting, problem-solving, and external engagement.”[21]
A busca pela qualidade regulatória neste cenário atual, portanto, é um processo desafiador, mas essencial para que se legitime a própria existência da regulação. A atuação regulatória de qualidade e excelência não pode ser dissociada de uma atividade coerente/robusta, sistematicamente transparente e responsiva às mudanças do presente e projeções de futuro, e ao mesmo tempo atenta à segurança jurídica necessária para um ambiente estável e eficaz.
Diante do crescente número de agentes engajados e interessados nas pautas do setor, acentua-se o ônus argumentativo no processo de tomada de decisão das instituições reguladoras. Nesse sentido, a atividade regulatória deve ser guiada pela máxima clareza, fundamentação e amparada em evidências.[22]
Para tanto, uma das estratégias possíveis é aprofundar o uso de ferramentas regulatórias como a Análise de Impacto Regulatório (AIR) e a Análise de Resultado Regulatório (ARR), que já vêm sendo utilizadas pela ANEEL em seus processos normativos, e está positivada no âmbito do MME por meio da Portaria Normativa nº 30/GM/MME.[23]
A adoção de instrumentos de participação pública que propiciem maior participação popular e a reunião de informações que fundamentarão a tomada de decisão contribui para qualidade regulatória, garante a legitimidade e potencializa as chances de êxito da política adotada.
A concretização do princípio da eficiência passará pela compreensão do Regulador de seu papel em uma sociedade plural, digital e de interesses múltiplos e dinâmicos. Nesse contexto, a concepção de reflexividade administrativa apresentada por Guerra[24] contribui ao propor uma atuação regulatória que se utilize de mecanismos de prevenção regulatória de riscos sistêmicos, por meio da articulação e mediação de interesses, pela estabilização de sistemas complexos e minimização da insegurança jurídica.
Outra importante ferramenta que merece destaque para que a regulação não seja um empecilho às inovações que podem impulsionar o setor de energia é o denominado “sandbox regulatório”. Em síntese, propõe-se a utilização de ambientes com requisitos regulatórios diferenciados por período limitado como ferramenta para desenvolvimento e aprendizagem de inovações e melhorias nos setores regulados. Veja-se a definição estabelecida pela Lei Complementar nº 182/2021:
Art. 2º. II – ambiente regulatório experimental (sandbox regulatório): conjunto de condições especiais simplificadas para que as pessoas jurídicas participantes possam receber autorização temporária dos órgãos ou das entidades com competência de regulamentação setorial para desenvolver modelos de negócios inovadores e testar técnicas e tecnologias experimentais, mediante o cumprimento de critérios e de limites previamente estabelecidos pelo órgão ou entidade reguladora e por meio de procedimento facilitado.”
O mecanismo apontado tem o potencial de reduzir obstáculos regulatórios, o tempo e o custo para novos projetos e ideias estarem disponíveis no mercado para o consumidor, além de facilitar o financiamento de projetos inovadores, pois as hipóteses podem ser testadas previamente, o que implica em maior segurança não somente para quem investe ou financia, mas para o mercado que daquele projeto se beneficiará.
A utilização de instrumentos como os mencionados são oportunidades para que pensemos a atividade regulatória de forma responsiva e aberta, permitindo a construção de soluções em conjunto com a sociedade e o mercado. O surgimento de tecnológicas disruptivas, como o hidrogênio, a geração distribuída, sistemas de armazenamento de energia, poderão ser beneficiados e implementados de forma mais célere com uma regulamentação moderna e aderente à realidade.
Por certo, o papel do advogado também é diretamente afetado e exige novas abordagens diante das mudanças de mercado.
Temos observado nos últimos 30 anos a virada de um Direito que pretende ir além de regras prescritas em códigos, e cada vez mais focado na necessidade de dar efetividade aos princípios constitucionais.
Desse modo, não basta nos atermos à importante tarefa de acompanharmos atualizações legislativas e jurisprudenciais, e precisamos ir além do silogismo necessário à aplicação de fatos à norma.
O Direito deve acompanhar o movimento da sociedade que está em constante transformação, e, sendo assim, cabe ao advogado compreender os novos modelos de negócio, as novas dinâmicas do mercado, a fim de conferir o suporte técnico necessário para encontrar soluções que atendam às pretensões dos clientes, à luz das particularidades de cada caso e da legislação aplicável.
Atentos às perspectivas conjunturais do setor de energia, que o tornam cada vez mais relevante em termos políticos e econômicos em âmbito mundial, bem como aos aspectos jurídicos que cercam as transformações setoriais, seguiremos, assim como nas últimas três décadas, nos posicionando enquanto atores dispostos a contribuir com os debates e para oferecer soluções jurídicas para os desafios que emergem no horizonte.
[1] Especialista em Direito Administrativo e Regulatório. Certificada no Curso de Raciocínio Jurídico pela Harvard Extension School. Especializada em Direito Administrativo dos Negócios pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Reconhecida por sua atuação no setor elétrico pelas publicações da ChambersandPartnersBrazil – Industries & Sectors: Energia (2023, 2022), Chambers and Partners Global: Energia (2022), Chambers and Partners: Energia (2021), Análise Advocacia Mulher (2021), Análise Advocacia: Energia Elétrica (2019).
[2] Doutoranda em Direito, Economia e Regulação na Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade de Minas Gerais (PUC Minas). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Minas Gerais (PUC Minas). Professora de pós-graduação na área de Contratos e Regulação da Energia. Reconhecida nos 3 últimos anos nas publicações nacionais e internacionais na área de Regulação em Energia da Chambers & Partners, Global e Chambers & Partners Latin America..
[3] Masters in Law (LL.M) e tutor do curso Direito da Energia e Negócios do Setor Elétrico, pelo Centro de Estudos em Direito e Negócios (CEDIN), Certificado Advocate no curso Regulatory Delivery – 2022, organizado pela Florence School of Regulation (FSR) em parceria com a Agência Brasileira de Agências Reguladoras (ABAR), Certificado nos Cursos de “Comercialização de Energia Elétrica”, “Contratos do Setor Elétrico” e “Aspectos contratuais relevantes e desafios na implementação de projetos de energia”, organizado pelo Instituto Brasileiro de Direito da Energia (IBDE) e Graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
[4] SOUTO, Marcos Juruena Villela Souto. Desestatização: Privatização, Concessões e Terceirizações. Rio de Janeiro, Lumen Juris. 1997.
[5] BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras: Constituição, transformações do estado e legitimidade democrática. Revista de Direito Administrativo, v. 229, p. 285-312, 2002. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/rda/article/view/46445. Acesso em: 16 nov. 2023.
[6] SOUTO, op.Cit.
[7] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
[8] TOLMASQUIM, Maurício Tiomno. Novo Modelo do Setor Elétrico Brasileiro. Rio de Janeiro: Synergia: 2015.
[9] CYRINO, André. Direito Constitucional Regulatório. Elementos para uma interpretação institucionalmente adequada da Constituição econômica brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2018.
[10] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Glossary of Statistical Terms. 2007. Disponível em:
https://stats.oecd.org/glossary/detail.asp?ID=7236#:~:text=OECD%20Statistics,implemented%20(or%20not%20implemented). Acesso em: 16 nov. 2023.
[11] Criado pela Lei nº 9.478/1997 e regulamentado pelo Decreto nº 3.520/2000, consiste em um órgão de assessoramento da Presidência da República, presidido pelo ministro de Minas e Energia, para a formulação de políticas e diretrizes de energia, destinadas a questões como o aproveitamento racional dos recursos energéticos do país; assegurar o suprimento de insumos às áreas mais remotas, rever periodicamente as matrizes energéticas das diversas regiões do país, dentre outras.
[12] TOLMASQUIM, Maurício Tiomno. Novo Modelo do Setor Elétrico Brasileiro. Rio de Janeiro: Synergia: 2015.
[13] KELMAN, Jerson. Relatório da Comissão de Análise do Sistema Hidrotérmico de Energia Elétrica. Brasília, 2001. Disponível em: http://www.kelman.com.br/pdf/relatorio_da_comissao.pdf. Acesso em: 16 nov. 2023.
[14] BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Proposta de modelo institucional do setor elétrico. 2003. Disponível em: https://www.bancor.com.br/Legisla%E7%E3o/PropostaModeloInstitucional.pdf. Acesso em: 16 nov. 2023.
[15] A CCEE, que substituiu o MAE, tem por finalidade viabilizar a comercialização de energia elétrica no Sistema Interligado Nacional, exercendo atribuições como a realização de leilões por delegação da ANEEL, administrar Contratos de Compra e Venda de Energia Regulada (CCEAR), dentre outras.
[16] ANEEL. Resolução Normativa nº 482, de 17 de abril de 2012. Art. 15. A ANEEL irá revisar esta Resolução até 31 de dezembro de 2019. (Redação dada pela REN ANEEL 687, de 24.11.2015)
[17] Vide notícias i) https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/08/16/falta-governanca-no-setor-eletrico-dizem-especialistas.ghtml; ii) https://climainfo.org.br/2023/08/20/falta-de-informacoes-sobre-apagao-cria-guerra-de-versoes-e-mobiliza-lobbies/
[18] Nesse sentido, vale destacar a criação da tarifa horária branca, opção tarifária para unidades consumidoras atendidas em baixa tensão, com valores diferentes aplicáveis ao longo do dia: i) ponta: tarifa mais elevada; ii) intermediário: tarifa de valor intermediário; e, iii) fora ponta: tarifa de valor menor.
[19] Quanto a esse aspecto, recomendamos a leitura da Nota Técnica nº 10/2022-SEM/ANEEL, que apresenta o esudo realizado pela ANEEL sobre medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para consumidores com carga inferior a 500 kW.
[20] BALDWIN, Robert. Regulatory Excellence and Lucidity. Paper Prepared for the Penn Program on Regulation’s Best-in-Class Regulator Initiative. 2015. p.1. Disponível em: https://www.law.upenn.edu/live/files/4711-baldwin-ppr-bicregulatordiscussionpaper-062015pdf. Acesso em: 16 nov. 2023.
[21] COGLIANESE, Cary. Summary: Achieving Regulatory Excellence. Wharton PPI B-School for Public Policy Seminar Summaries. Disponível em: https://repository.upenn.edu/pennwhartonppi_bschool/7. Acesso em: 16 nov. 2023.
[22] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Regulatory Policy Outlook 2021. Paris: OECD Publishing, 2021. Disponível em: https://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/oecd-regulatory-policy-outlook-2021-38b0fdb1-en.htm. Acesso em: 16 nov. 2023.
[23] A utilização dessas ferramentas pela ANEEL regulado internamente pea Norma de Organização nº 40, aprovada pela REN nº 941/2021. Esta Resolução substituiu a versão anteriormente aprovada pela REN nº 798/2017, buscando adequar o seu texto às alterações legais supervenientes.
[24] GUERRA, Sergio. Discricionariedade, regulação e reflexividade: uma Nova Teoria sobre as Escolhas Administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2021.