Após STF e seus efeitos vinculantes, ainda há dúvidas sobre o legítimo credor do IPVA

Em setembro de 2020, em mais um episódio da conhecida guerra fiscal brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF) enfrentou importante questão acerca da cobrança do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA): se o veículo é licenciado e emplacado em um Estado, mas circula nas ruas e estradas de outro, qual deles detém legitimidade ativa para a cobrança do imposto?

A resposta não é trivial e há um fato decisivo: a inexistência de lei complementar dispondo sobre os aspectos gerais desse imposto estadual, nos termos do artigo 146, III, da CF/1988, já que o Código Tributário Nacional não tratou dos contornos gerais desse imposto.

A questão é de especial relevância para as empresas que praticam a locação de veículos, ou para aquelas cujas atividades demandam a manutenção de ampla frota, e que precisam dispor dos seus veículos em mais de um Estado para execução de suas atividades. Vale destacar ainda que a questão foi objeto de inúmeras autuações fiscais dos Estados em face de empresas nos últimos anos.

Em nível estadual, as legislações determinam, em geral, que o IPVA é devido no Estado, se o veículo for lá licenciado. Contudo, muitas dessas normais locais, das mais variadas formas, determinam que o IPVA lhes será devido, também, sobre os veículos que lá trafegam, ainda que licenciados em outros estados, aos quais o imposto já fora recolhido.

Mesmo diante de duas decisões do STF, de efeito vinculante, tanto em sede de controle de constitucionalidade difuso (Tema nº 708 — RE nº 1.016.605) quanto concentrado (ADI nº 4.612/SC), ainda há incerteza quanto ao legítimo ente tributante em situações como esta, especialmente no caso das empresas que possuem múltiplos estabelecimentos, em mais de um estado, e cujos veículos trafegam em locais diversos de onde foram licenciados.

Essa incerteza decorre principalmente da aparente contradição entre a tese fixada no Tema nº 708 (A Constituição autoriza a cobrança do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores — IPVA — somente pelo Estado em que o contribuinte mantém sua sede ou domicílio tributário”) e a declaração de constitucionalidade de lei catarinense na ADI nº 4.612/SC que, de outro modo, autoriza a cobrança do IPVA diante do mero tráfego ou disponibilização para locação do veículo no estado, ainda que nele não esteja localizada a sede ou domicílio tributário eleito pelo contribuinte, e que o veículo tenha sido licenciado em outro estado da Federação.

Ocorre que, para que os contribuintes tenham segurança para se posicionarem diante desta situação, é necessário compatibilizar as conclusões destes julgamentos, que ocorreram de forma conjunta, na mesma sessão virtual (4/9/2020), e cujo conteúdo dos votos vencedores e vencidos foi praticamente o mesmo.

De um lado, o ministro Celso de Mello, relator do Tema nº 708, cujo voto fora vencido, liderava a tese de que o artigo 158, III da CRFB/88, referente à repartição da receita do IPVA com o município em que o veículo fora licenciado/emplacado, seria suficiente para extrair a intenção do constituinte de que o estado correspondente ao município de registro do veículo seria o legítimo credor do tributo, independentemente da análise quanto ao seu domicílio.

De outro, o ministro Dias Toffoli, relator da ADI nº 4.612/SC, liderou a tese vencedora em ambos os casos de que, apesar da espécie tributária “imposto” não ser vinculada a determinada despesa pública, o seu aspecto espacial deve ser necessariamente conexo à sua materialidade. Assim, considerando que o histórico de tributos sobre veículos no Brasil revela a intenção de prover recursos para a manutenção da infraestrutura rodoviária, a legitimidade ativa para cobrança do IPVA deve ser do estado que é onerado com o tráfego do respectivo veículo, ou seja, deve-se tributar o veículo onde este efetivamente circula.

Dessa forma, apesar da aparente contradição, a tese vencedora em ambas as ações estabeleceu que o critério objetivo para ditar a legitimidade ativa da cobrança do IPVA é o “vínculo substancial” (ao contrário de meramente formal) do veículo objeto de tributação com o estabelecimento do contribuinte, cuja localização ditará qual Estado poderá exigir o imposto.

No entanto, a tese fixada no Tema nº 708 revelou-se demasiadamente simplista, o que provavelmente sobreveio do fato de que o pano de fundo do recurso extraordinário paradigmático, ao contrário da discussão que permeou a ADI nº 4.612/SC, não envolvia a pluralidade de estabelecimentos — o contribuinte recorrente possuía apenas o estabelecimento matriz, em Minas Gerais, onde circulava o veículo, o qual, de outro modo, foi licenciado em Goiás, lá pagando o imposto, mesmo sem deter estabelecimento naquele Estado.

Por sua vez, a discussão travada na ADI 4.612/SC foi mais complexa, pois se discutiu a (in)constitucionalidade de dispositivos de lei estadual catarinense que, dentre outras questões, previam a ocorrência do fato gerador do IPVA relativamente a veículo de propriedade de empresa locadora no momento em que colocado à disposição ou locado no território estadual, ainda que licenciado em estado diverso (e que lá já tenha sido recolhido o imposto) e qualquer que seja a localização do domicílio tributário da pessoa jurídica.

Neste caso, a questão da pluralidade de estabelecimentos foi enfrentada no voto vencedor, prevalecendo o supracitado entendimento do ministro Dias Toffoli de que, independentemente da opção de domicílio tributário do contribuinte (artigo 127 do CTN), o veículo deverá ser tributado onde está localizado o estabelecimento com o qual tem vínculo material, que seria aquele estabelecimento em cujo local o veículo de fato trafega.

Destaca-se que a proposta de tese do ministro Dias Toffoli no Tema nº 708, embora não adotada pelo ministro Alexandre de Moraes (que abriu a divergência e foi relator para fins de fixação da tese), foi sugerida nos exatos termos do que se decidiu na ADI nº 4.612/SC: “A capacidade ativa referente ao IPVA pertence ao estado onde deve o veículo automotor ser licenciado, considerando-se a residência ou o domicílio — assim entendido, no caso de pessoa jurídica, o estabelecimento — a que estiver ele vinculado”.

Neste contexto, mesmo diante de um esforço em se compatibilizar os entendimentos firmados nos referidos julgamentos, ainda há insegurança jurídica para os contribuintes. A tese proposta pelo ministro Toffoli continua problemática no caso de pessoa jurídica que, detendo mais de um estabelecimento, licencia o veículo em um deles, local do pagamento do IPVA, mas, por razões de ordem empresarial, opta por utilizar este veículo em outro Estado, de forma temporária ou definitiva. Ademais, há importantes questões não resolvidas de forma clara e definitiva pelo STF:

— O que caracteriza definitivamente, de forma padronizada para todos os Entes da federação, o conceito de vínculo substancial?
— Haveria um período temporal mínimo que o veículo deva permanecer no Estado do local da filial para que o IPVA seja lá devido, e não no local de seu registro (sendo este um Estado diverso)?
— Basta que o veículo ingresse em território estadual em que haja estabelecimento do contribuinte para a ele vincular-se substancialmente?
— Terá o Estado capacidade ativa para exigir o imposto mesmo se não houver estabelecimento do contribuinte no território estadual, onde o veículo está trafegando de forma predominante?
— Se o veículo é licenciado e armazenado em Município fronteiriço, onde a pessoa jurídica detém filial, mas circula além das linhas estaduais, a quem deverá ser recolhido o IPVA?
— Deverá haver múltiplos recolhimentos do tributo e repartição proporcional da receita entre os Estados envolvidos, em casos que o veicule circule em ambos de forma relevante, e no mesmo exercício financeiro, mesmo considerando que o IPVA é apurado anualmente e pode ter alíquotas diversas entre Estados?
— Será garantida a repetição de indébito, nas situações de pagamento indevido a determinado Estado?

Em verdade, a proposta do STF parece revelar caráter consequencialista, fundado na intenção dos ministros de coibirem práticas fraudulentas de evasão e de pacificarem a guerra fiscal, utilizando-se de argumentos de índole social, econômica e histórica para solucionar conflito de normas jurídicas, mas que, adversamente, acaba por gerar mais dúvidas e prejuízos aos contribuintes de boa-fé.

Neste cenário, as empresas de locação de veículos e as frotistas, inclusive as que prestam serviços de transporte rodoviário interestadual, que possuem a intenção de manterem suas obrigações tributárias regulares, enfrentarão muitos entraves de ordem burocrática.

Considerando que o IPVA é apurado anualmente, a alteração do local de circulação de veículos entre Estados durante o ano-calendário, que é inerente à atividade dessas empresas, periodicamente, por questões mercadológicas, comerciais e contábeis (depreciação dos veículos, por exemplo), exigirá um intenso e oneroso controle documental, contábil e logístico.

Isso significa que a definição precisa do legítimo credor do IPVA é crucial para este segmento econômico, pois, a depender da derradeira conclusão do STF, implicará no pagamento do IPVA a mais de um Estado da federação em um mesmo exercício econômico, o que poderá gerar recolhimentos indevidos e a maior, inclusive com insegurança quanto ao valor da base de cálculo do imposto, considerando o período do IPVA devido a um e a outro Estado.

A ausência de Lei Complementar que regule os aspectos gerais e nacionais do IPVA não pode ser ensejo para a imposição de ônus irrazoáveis aos contribuintes. Relembre-se que a própria Carta Magna prevê que a competência para estabelecer normas gerais em matéria tributária, especialmente para solucionar conflitos de competência entre Estados, é de Lei Complementar, como prevê expressamente o artigo 146, I da CRFB/88.

Há um motivo especialmente relevante para isto, sobretudo neste caso do IPVA: as regras gerais em matéria tributária que delimitarão a cobrança, por todos os Estados da federação, de imposto que afeta significativamente a circulação de bens e pessoas, cujo aumento terá efeito cascata sobre o preço de praticamente todos os bens transportados, devem ser estabelecidas com base em dados sociais, estatísticos e econômicos, que só poderão ser devidamente apurados e apreciados através do devido processo legislativo no âmbito do Congresso Nacional.

A realidade por trás da questão em análise foi documentada pela Associação Nacional de Empresas de Aluguel de Veículos (Anav), em sede de memorial apresentado na ADI nº 4.612, em material intitulado como o “caos na tributação pelo IPVA”. Em pesquisa, foram observados 140.338 carros, durante 15 meses, de duas das maiores empresas de aluguel de veículos do país. Mais da metade dos veículos precisaram ser disponibilizados em mais de um Estado no mesmo ano, seja porque o cliente retirou em um Estado e devolveu em outro, seja pela sazonalidade e demanda comercial, ou ainda para logística de otimização da taxa de ocupação de veículos. Por fim, há ao menos dez Estados com legislação específica e conflitantes entre si quanto à ocorrência do fato gerador do IPVA.

Logo, é evidente que uma proposta mais racional e objetiva é necessária para garantir um ambiente de negócios saudável para o setor de transportes, que só poderá advir de uma Lei Complementar robusta, baseada em dados empíricos, a ser promovido pelo Congresso Nacional nos termos de sua competência constitucionalmente estabelecida. Atualmente, está em trâmite o Projeto de Lei Complementar nº 343/2013 na Câmara dos Deputados, que se encontra perante a Comissão de Finanças e Tributação desde maio de 2017.

Destaca-se que, no passado recente, o STF reconheceu e privilegiou a função do Congresso Nacional de regulamentar normas gerais em matéria tributária: no julgamento do Tema nº 1.093, após reconhecer a inconstitucionalidade da exigência do ICMS-DIFAL devido em operações destinadas a não contribuintes do imposto, sem respaldo em Lei Complementar, a Corte Suprema modulou efeitos da  sua decisão, para que só se tornasse efetiva no ano seguinte, com a expressa intenção de conceder prazo ao Poder Legislativo para que promulgasse a referida norma geral de cunho nacional, o que nos parece que seria a solução mais razoável para a controvérsia do IPVA.

De qualquer forma, o próprio STF reconheceu que os exatos contornos da controvérsia quanto ao aspecto espacial do imposto ainda não foram pacificados. Após a conclusão do julgamento do Tema nº 708 e da ADI nº 4.612/SC, foi afetado o Tema nº 1.198, que decidirá sobre a “Constitucionalidade da cobrança do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) por Estado diverso da sede de empresa locadora de veículos, quando esta possuir filial em outro estado, onde igualmente exerce atividades comerciais”.

Também está pendente de julgamento a ADI nº 4.376/SP, que apreciará a constitucionalidade de lei paulista similar à catarinense objeto da primeira ADI julgada pela Corte Suprema. Por fim, destaca-se a ADI nº 7.059/PE, em que foi recentemente deferida medida cautelar para suspender trechos de lei pernambucana que pretendeu instituir multa punitiva a veículos que circulassem no Estado sem estarem lá licenciados. Neste caso, o ministro André Mendonça destacou que “é notável a existência de sinalizações por parte do Tribunal na direção de novas discussões, em sede plenária, no bojo de outras ações diretas que veiculam a mesma questão controvertida aqui colocada”.

Espera-se, portanto, que tais julgamentos enfrentem todos os pontos de dúvida acima colocados, de modo a proporcionar segurança jurídica a todos os contribuintes, incluindo as pessoas jurídicas frotistas e locadoras de veículos, sem que se deixe de ressalvar o indispensável papel do Congresso Nacional na edição da Lei Complementar que trate dos aspectos gerais do IPVA, sobretudo a delimitação precisa da competência dos Estados nas situações ora colocadas.

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Referências bibliográficas

Esse tipo de argumentação não deve ser confundido com a perspectiva consequencialista, que seria propor um objetivo à frente e acima dos demais. Isso porque, em primeiro lugar, muitos dos consequencialismos hodiernos têm como metarregra algo não positivado (é o caso do law and economics clássico, ao defender a eficiência econômica como critério válido e necessário). Da mesma forma os moralismos universais e procedimentais, que buscam reforços em discursos ou sobre princípios gerais (algo como a proporcionalidade em um de seus testes, o de adequação entre fins e meios etc.)”. ANDRADE, José Maria Arruda de. Consequencialismo e argumento de risco fiscal na modulação de efeitos em matéria tributária. Revista Direito Tributário Atual, nº 40, p. 511, 2018.